Recentemente, o Tribunal de Contas da União proferiu dois
julgados a respeito da aplicação dos princípios da moralidade e impessoalidade
nas licitações públicas, tendo em vista a constatação de “potencial conflito de
interesses” em razão de vínculo de parentesco ou de cunho
profissional/empresarial entre os participantes e agentes públicos envolvidos no
certame.
No Acórdão nº 1941/2013, o Plenário do TCU concluiu que “a
contratação pela Administração de empresas pertencentes a parentes de gestor
público envolvido no processo caracteriza, diante do manifesto conflito de
interesses, violação aos princípios constitucionais da moralidade e da
impessoalidade”.
A seu turno, a Corte de Contas, no julgamento do Acórdão nº
1924/2013, vaticinou ser “ilegal a participação em licitação de empresa cujos
sócios sejam associados ao autor do projeto básico em outras sociedades
empresariais, à vista do disposto no art. 9º, inciso I e § 3º, da Lei
8.666/93”.
A partir do exame das premissas dos transcritos julgados,
faz-se necessário tecer algumas observações, sob pena de aplicação “cega” e
“acrítica” da jurisprudência do TCU.
Tanto em sede doutrinária, quanto nas lides da advocacia, venho
militando que é indevido reputar-se, como de ordem absoluta, a presunção segundo
a qual, o vínculo de integrante do quadro societário da licitante com a
Administração Pública, tomado de per si, caracteriza preferência, constitui
discriminação, parcialidade, afetando a igualdade de condições entre os
participantes.
Considerar tal presunção como regra absoluta e inexorável, é
entender que a simples participação de empresa, cujo quadro societário seja
integrado por parente de agente público vinculado à entidade promotora da
licitação, resultaria em favorecimento por parte dos demais servidores
responsáveis pela condução do procedimento licitatório. Que, inexoravelmente, o
Administrador sempre dará preferência a um parente ou sócio em outras empresas,
violando os princípios da moralidade administrativa e da isonomia.
Logo, as hipóteses previstas no art. 9º da Lei nº 8.666/93,
devem ser interpretadas em conformidade com a Constituição Federal, em especial,
os princípios orientadores dos procedimentos de contratação pública: isonomia,
moralidade, ampla competitividade, livre iniciativa e economicidade, de modo a
se reconhecer que não há uma presunção absoluta de privilégio espúrio à empresa
que tenha em seu quadro societário pessoa que seja parente de servidor vinculado
ao órgão promotor da licitação.
Destarte, não se pode admitir uma situação na qual, a partir
uma mera presunção descabida e contra legem, um licitante que apresente a melhor
proposta para a Administração, seja preterido de um certame e, consequentemente,
deixe de contratar com o Poder Público e, assim, desenvolver suas atividades.
Portanto, está claro que ao impedir a participação de empresa que tenha em seu
quadro societário parente de servidor público, haverá manifesta violação à
liberdade de iniciativa, elevada ao status de fundamento da República Federativa
do Brasil (CF, art.1º, IV).
De acordo com tais premissas, é possível concluir que o
impedimento de participação nas licitações por parte de parente de servidor
público integrante do órgão promotor do certame é de ordem relativa e não
absoluta, de modo que a infração aos princípios da moralidade e da isonomia só
restará efetivamente configurada quando as circunstâncias do caso concreto
evidenciarem o favoritismo espúrio ou a influência indevida do agente público em
favor de seu parente.
Partindo de tal conclusão, mostra-se temerário o procedimento
consistente no impedimento de participação de empresa tão somente pelo fato de
ser constatado que seu quadro societário é integrado por um parente do agente
público ou da autoridade promotora da licitação, retirando-se, de forma
indevida, o dever da Administração em levantar as provas concretas do
favorecimento espúrio e reprovável e suprimindo o direito de cidadão em
defender-se dos argumentos via o devido processo legal.
Diante disso, é evidente que a Administração só poderá evitar a
participação de empresa em licitação caso já existam, previamente, elementos de
prova no sentido de ser o parente licitante indevidamente favorecido, de modo
que, aí sim, esteja configurada a violação concreta aos princípios da moralidade
e impessoalidade.
Caso contrário, a Administração não contará com fundamentos
legalmente pertinentes para impedir a participação de empresa em prélio
licitatório.
Partindo das mesmas premissas teóricas, o próprio TCU possui
julgados no sentido de que a existência de licitantes com sócio em comum, por si
só, não configura fraude à licitação. Há que existir outros elementos ou
indícios de conluio tendentes a frustrar a isonomia e a competitividade.
Nesse sentido, por meio do Acórdão nº 2.341/2011-Plenário, a
Corte de Contas da União considerou restritiva à competitividade cláusula
editalícia que proibia a participação concomitante de licitantes com sócios em
comum.
Para o Tribunal, tal cláusula apresenta leitura objetiva e
apriorística da Lei de Licitações (ofensiva, portanto, ao princípio da
legalidade e da competitividade), na medida em que considera de forma
inarredável que a ocorrência de sócios em comum configura fraude à licitação.
Conforme se percebe das razões do julgado, a coincidência de sócios apresenta-se
como situação de risco à competitividade. Mas, isto, por si só, não pode ser
fato configurador (objetivamente verificável) de circunstância de conluio e de
fraude à licitação.
Esse raciocínio guarda compasso com a presunção de boa-fé dos
licitantes e com o princípio do devido processo legal. É que toda imputação de
ofensa à lei deve ser precedida da devida demonstração material de sua
ocorrência, garantindo, por evidente, o contraditório e a ampla defesa aos
licitantes.
Com efeito, no julgado em questão, o TCU assentou que devem ser
verificados outros elementos que legitimam concluir pela ocorrência de conluio
entre as empresas. Deve ser avaliada qual é a participação do sócio (em comum)
em cada uma das licitantes e se se trata de sócio gerente que detenha poderes
decisórios.
Portanto, advoga-se que as hipóteses do art. 9º da Lei de
Licitações estão a instituir um impedimento de participação na licitação de
ordem relativa e não absoluta (a priori), de modo que a infração aos princípios
da moralidade e da isonomia só restará efetivamente configurada quando as
circunstâncias do caso concreto evidenciarem o favoritismo espúrio ao licitante
ou a influência indevida de agente público que integre a entidade promotora da
licitação.
(Victor Amorim, advogado e especialista em Direito Público;
membro – Academia Goiana de Direito (ACAD); administrativo (IDAG) e Instituto
Goiano de Direito Constitucional (IGDC); ex-professor – PUC/GO (2009-2010) e
ESUP/FGV (2009); site: www.victoramorim.jur.adv.br)
Fonte: Diário da Manhã
Att.
Patricia Campos
Tel: (31) 3463-2838 / 9675-5477
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